Em 2023, o Brasil encerrou o ano com uma triste marca: 3.903 mulheres assassinadas, o que equivale a dez vítimas por dia. O número, o mais alto desde 2018, foi divulgado nesta segunda-feira (12) no Atlas da Violência, relatório elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Do total de homicídios femininos registrados, cerca de um terço pode ser classificado como feminicídio, segundo estimativas dos pesquisadores. A taxa nacional é de 3,5 homicídios por 100 mil mulheres, índice que permanece elevado mesmo em um cenário de redução geral da violência letal no país.
“É preocupante”, avalia Manoela Miklos, pesquisadora sênior do Fórum. Para ela, os números refletem uma realidade complexa, que vai além dos crimes de ódio motivados por gênero. “A hipótese de que, para além dos feminicídios, haja mais mulheres engajadas em dinâmicas em condutas criminosas, por exemplo, não é descartada.”
Apesar das diferentes interpretações, Miklos destaca que o cenário exige resposta imediata do poder público. “A gente precisa melhorar no desenho, na implementação de serviços públicos para mulheres vítimas de violência.”
O relatório também destaca casos emblemáticos que evidenciam a gravidade da situação. Um exemplo recente é o assassinato da influenciadora Jane Domdoca, de 42 anos, baleada na região central de São Paulo. O autor do crime foi o ex-marido, preso em flagrante por feminicídio.
Embora o Atlas aponte uma redução de 2,3% na taxa geral de homicídios — atualmente em 21,2 por 100 mil habitantes, o menor patamar desde 2013 —, o recuo não se refletiu nas estatísticas de violência contra mulheres. “O mais interessante sobre essas taxas é comparar: quando a gente olha para as taxas de homicídios em geral, a gente percebe um recuo de casos. Quando a gente olha para a taxa de homicídios de mulheres, não”, observa Miklos.
Segundo especialistas, o declínio nos homicídios em geral tem mais relação com a atuação de facções criminosas do que com políticas públicas. Já no caso dos crimes contra mulheres, o enraizamento de valores patriarcais e a fragilidade da rede de proteção são apontados como fatores determinantes.
O estudo se baseia, principalmente, nos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), ambos do Ministério da Saúde. A metodologia adotada busca contornar a subnotificação e identificar homicídios de mulheres que podem ter motivação de gênero, mesmo sem o registro formal como feminicídio.
“A lei (do feminicídio) começa em 2015 como uma categoria penal. No entanto, o feminicídio existe desde que o mundo é mundo. Então a gente queria achar uma proxy, uma medida indireta do feminicídio no Brasil mesmo antes da criação da lei”, explica Daniel Cerqueira, técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea.
Para isso, os pesquisadores consideram os assassinatos ocorridos dentro de casa como indicativos de feminicídio. “As evidências nacionais e internacionais mostram que, quando uma pessoa é assassinada dentro de casa, em mais de 90% das vezes o perpetrador é íntimo da vítima: marido, ex-cônjuge ou familiar muito próximo”, complementa Cerqueira.
Com base nessa abordagem, o Atlas estima que 35% dos homicídios de mulheres registrados em 2023 aconteceram no ambiente doméstico — o equivalente a 1.370 casos. “Considerando essa proporção, 1.370 dos 3.903 homicídios registrados no ano teriam acontecido nesse local, sendo lidos, portanto, como feminicídio”, conclui o relatório.
Cerqueira também aponta que a radicalização política e a exaltação de valores conservadores têm agravado a situação. “O que a gente pode falar, de muitos anos, é que há o recrudescimento da polarização e radicalização política, que muitas vezes traz à tona valores culturais que reforçam a ideia e os valores do patriarcado como meio de resolver problemas.”
Outro ponto levantado é a melhora no registro oficial de feminicídios pelas autoridades policiais. “Hoje a gente vê os dados policiais andando mais juntos com os dados da saúde”, observa Cerqueira, indicando um avanço na compreensão institucional da natureza desses crimes.