O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou um decreto no último dia 21 que cria novas regras para aquisição, registro, posse, porte, cadastro e comercialização nacional de armas de fogo, munições e acessórios. Entre as principais medidas está a transferência da fiscalização para a Polícia Federal (antes era do Comando do Exército), a redução da validade dos Certificados de Registros de Armas de Fogo (CRAFs) e a restrição da atividade dos caçadores, atiradores e colecionadores (CACs).
O decreto é uma promessa de campanha de Lula para reverter as flexibilizações propostas pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), mas acabou sendo adiada por conta dos atos de 8 de janeiro na sede dos Três Poderes. Desde 2019, o ex-presidente extinguiu a comprovação por efetiva necessidade e editou decretos que facilitaram o porte e a posse de armas para pessoas físicas, o que aumentou as vendas de armas de fogo para a população civil. O governo também modificou a classificação de calibres para permitir que a população pudesse adquirir armas que eram de uso restrito a forças de segurança e militares. Até março do ano passado, foram 19 decretos presidenciais, 17 portarias, duas resoluções e três instruções normativas sobre o tema, todas sem o aval do Congresso Nacional.
Nos últimos quatro anos, mais de um milhão de armas foram registradas no Brasil. Foram 1.354.751 novos armamentos que entraram em circulação, segundo dados colhidos por meio da Lei de Acesso à Informação, analisados pelo Instituto Sou da Paz e Instituto Igarapé. Somente no ano passado foram 553.379 armas registradas – um recorde no país – sendo 431.137 de CACs e 122.242 armas registradas por pessoas comuns para defesa pessoal, armas particulares de servidores civis com prerrogativa e armas de caçadores de subsistência.
Esse número cresce ano a ano, antes mesmo do início do governo Bolsonaro. Em 2018, ano em que o ex-presidente venceu a eleição contra Fernando Haddad (PT), foram registradas 95.125 novas armas. Em 2019, primeiro ano da gestão bolsonarista, passou para 140.073. Em 2020 foram 268.163 e em 2021 esse número saltou para 393.136. Dessa forma, com as flexibilizações ocorridas no governo Bolsonaro, o número de armas de fogos mais do que dobrou nos últimos quatro anos no Brasil: de 1.320.582 registros em 2018, passamos a ter 2.965.439 no fim de 2022.
Se formos falar especificamente dos CACs, o número de pessoas com certificado de registro de armas de fogo aumentou quase sete vezes durante o governo Bolsonaro, segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Antes da posse do ex-presidente, o Brasil tinha 117,5 mil pessoas com registro de CAC – esse número saltou para 783,4 mil após os últimos quatro anos. Ou seja, a cada 100 mil pessoas, 386 têm a autorização.
Entre 2017 e 2022, o número de munições vendidas no mercado nacional cresceu 147%, saindo de 170,2 milhões para 420,5 milhões, considerando todos os segmentos. Os clubes de tiros também se proliferaram pelo Brasil nos anos Bolsonaro. Foi registrado um aumento de 291% de entidades de tiro desportivo durante o mandato, passando de 163 em 2018 para 475 em 2022. No último ano do governo do ex-presidente, o país tinha 2.095 clubes de tiro – quase metade (1.006) foi fundada de 2019 a 2022. No período, quase um clube de tiro foi aberto por dia no Brasil.
Afinal, como é a história da regulamentação de armas no Brasil?
A regularização da fabricação e comercialização de armas no Brasil data de 1934, por meio de um decreto do governo de Getúlio Vargas. Somente no início da década de 80 foi editada uma portaria para controlar a aquisição e registro de armas por civis.
No entanto, as armas de fogo estão presentes no Brasil desde o século retrasado. Ainda em 1832, apenas dez anos após a Independência, o senador José Inácio Borges subiu à tribuna do Senado, localizado na época no Rio de Janeiro, para criticar o cenário de violência no país e defender o porte de armas de fogo. As armas estavam nas mãos principalmente de conquistadores, defensores da honra, soldados em guerra, disputas de terras nas zonas rurais e também com os cidadãos comuns.
Já nos tempos de República, o armamento da população civil foi incentivado pelo poder público como política de Estado, alegando falta de recursos financeiros para garantir a segurança. Dessa forma, muitos voluntários ajudaram os militares na Guerra do Paraguai e outras batalhass. No entanto, muitos conflitos aconteceram na sociedade, por vezes até contra o Estado nas revoltas armadas, e o Congresso teve que se movimentar e aprovar, na década de 30, uma lei que tornou crime o uso de pistolas sem licença, na era Vargas.
Na década de 80, o cenário de crises econômicas, hiperinflação, desemprego em alta e empobrecimento da população gerou uma corrida armamentista. Com o crescimento da criminalidade em grandes cidades e o tráfico de drogas em expansão, brasileiros procuravam se proteger comprando pistolas e espingardas em lojas de departamento, sem burocracia. Eram tempos em que políticos andavam armados, revistas faziam propagandas de armas e cidadãos anunciavam vendas de aparelhos usados na sessão de classificados dos jornais. Andar armado não era crime, era apenas uma contravenção penal.
Ao longo dos anos 90, o debate sobre restrição do acesso às armas esquentou de vez, com parlamentares discutindo o tema no Congresso, mobilização de ONGs e conscientização da sociedade pelos meios de comunicação. O desarmamento apareceu também no horário mais nobre da televisão brasileira, como tema na novela ‘Mulheres Apaixonadas’, da Rede Globo. Diversas passeatas foram realizadas nas principais capitais do Brasil, com multidões apoiando a causa.
Em 1997, com a criminalidade em alta, o projeto de lei 64/1996, originado na Câmara dos Deputados, gerou discussões que culminaram na Lei 9.437 que, entre outras coisas, criou o Sistema Nacional de Armas (Sinarm). O cadastro agora seria administrado pela Polícia Federal, e não mais pelas secretarias estaduais de Segurança Pública. A partir desse momento, foi feito um cadastro para as armas possuídas por civis e passou-se também a impor novas e rígidas exigências para a concessão do porte de arma, tais como a comprovação de idoneidade, de comportamento social produtivo, de efetiva necessidade, de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo. Essa lei também definiu crimes decorrentes de sua desobediência, como o porte e a posse ilegal de arma.
Em paralelo ao Sinarm, o Senado estabeleceu a Lei 292/1999, que daria anos mais tarde no Estatuto do Desarmamento. Com o novo sistema, os estados da federação enviaram as informações e foi possível traçar um panorama nacional do tema. Em 2005, cerca de três milhões de armas estavam cadastradas e os estados que mais tinham registros eram São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Rio de Janeiro e Santa Catarina.
As discussões sobre a proibição da venda de armas ganharam força em 2003, no início do primeiro governo Lula. Logo nos seis primeiros meses de mandato, o então presidente pediu ao Congresso prioridade na votação sobre a comercialização e porte de armas de fogo. No final desse ano, o Congresso aprovou o Estatuto do Desarmamento, que ficou conhecido como a mais ampla política de controle de armas da história do Brasil.
Segundo pesquisa Ibope divulgada à época sobre o tema, a maioria da população (65%) acreditava que o novo estatuto poderia ajudar a diminuir a violência no país. Outros 23% não confiavam em mudança do cenário e 8% acreditavam que haveria um aumento da violência com as novas regras. O estudo mostrava que sete a cada dez entrevistados (67%) já tinham ouvido falar do estatuto do Desarmamento e, entre esses, 82% posicionavam-se favoravelmente às propostas.
Junto à campanha de entrega de armas mediante a uma indenização, o estatuto também realizou, em 2005, o primeiro referendo do país desde a redemocratização, convocando a população a decidir sobre a proibição ou não da venda de armas de fogo em território nacional. Ao contrário da pesquisa Ibope de dois anos antes, ficou decidido por 63,94% dos votos válidos que o comércio permaneceria permitido no Brasil.
Dezessete anos após o referendo, no entanto, o cenário mudou completamente na opinião pública. Pesquisa Datafolha datada de maio do ano passado mostra que 7 em cada 10 brasileiros (72%) negam a ideia de que armas trazem mais segurança para a população, contra 26% que concordam com a ideia. Perguntados especificamente se é preciso facilitar o acesso às armas no Brasil, o mesmo número desaprovou.
Atualmente, o Brasil é o país em que mais se mata por armas de fogo no mundo. Ao contrário de países europeus e os Estados Unidos, em que a maioria ou grande parte das mortes por arma de fogo são suicídios, no Brasil a quase totalidade do indicador deve-se a homicídios. EUA, México, Índia e Colômbia completam o top 5 dos países que mais registram mortes por arma de fogo nos últimos 30 anos.
O que muda no novo decreto de Lula
A nova regulamentação começa por reduzir a quantidade de armas e munições acessíveis para civis, a chamada defesa pessoal. Se antes o número permitido era de até quatro armas, sem comprovação da efetiva necessidade e com possibilidade de ampliação, reduziu-se agora para duas. A queda também está nas munições – antes eram permitidas 200 por arma, por um ano, e até se chegou a 600, mas de agora em diante esse número cai para 50.
Os CACs também serão atingidos com as mudanças. Caçadores passam a poder ter até seis armas e 500 munições por arma, por ano – antes o número era de 30 armas, sendo 15 de uso restrito, até mil munições por arma de uso restrito e mais 5 mil munições por arma de uso permitido.
Os colecionadores, que tinham direito a cinco armas de cada modelo, tipo, marca, variante, calibre e procedência, terão apenas uma. E também estão vedadas as automáticas e as longas semiautomáticas de calibre de uso restrito cujo primeiro lote de fabricação tenha menos de 70 anos – antes, era de 30 anos.
Já os atiradores desportivos terão regras ainda mais rígidas e serão divididos em três níveis de acordo com a quantidade de treinamentos e competições em clubes de tiro por ano. No nível 1, são até quatro armas de fogo, até quatro mil cartuchos por ano e até oito mil cartuchos .22 LR ou SHORT por ano. No nível 2 são até oito armas de fogo de uso permitido, até dez mil cartuchos por ano e até 16 mil cartuchos por ano .22 LR ou SHORT. E, por fim, no nível 3 são até 16 armas de fogo, sendo 12 de uso permitido e até 4 de uso restrito, até 20 mil cartuchos por ano e até 32 mil cartuchos por ano .22 LR ou SHORT.
O decreto também trata da distinção entre as armas de uso dos órgãos de segurança e as armas acessíveis aos cidadãos comuns. Com isso, pistolas 9mm, .40 e .45 ACP voltam a ser de uso restrito, assim como as armas longas de alma lisa semiautomáticas. Está prevista para o segundo semestre a recompra de armas que eram de uso permitido e passarão a ser de uso restrito.
Outra alteração que se refere aos CACs é a exigência de emissão da guia de tráfego aos colecionadores, atiradores, caçadores e representantes estrangeiros em competição internacional oficial de tiro realizada no território nacional para transitar com armas de fogo registradas em seus respectivos acervos, devidamente desmuniciadas, em trajeto preestabelecido, por período pré-determinado, e de acordo com a finalidade declarada no correspondente registro.
As entidades de tiro desportivo terão 18 meses para se adequarem a algumas exigências: distância superior a um quilômetro em relação a estabelecimentos de ensino, públicos ou privados; cumprimento das condições de uso e armazenagem das armas de fogo utilizadas no estabelecimento; e funcionamento entre 6h e 22h (proibição dos clubes de tiro 24h).
Outro ponto do decreto acaba com a validade de 10 anos dos registros de armas de fogo e passam a ser de: três anos para colecionador, atirador desportivo e caçador excepcional; cinco anos para registro concedido para fins de posse e caça de subsistência; e cinco anos para as empresas de segurança privada. Integrantes da ativa da PF, PRF, policiais penais, polícias civis, polícias da Câmara e Senado, das guardas municipais, da ABIN, guardas prisionais, do quadro efetivo do Poder Judiciário e Ministério Público no exercício de funções de segurança, dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, dos auditores fiscais, analistas tributários e empresas de segurança privada deverão realizar a avaliação psicológica de seus integrantes para o manuseio de arma de fogo a cada três anos.
Oposição tenta derrubar decreto no Senado: “Armadilha”
Atualmente, dois projetos de decreto legislativo (PDLs) estão em tramitação no Senado na tentativa de cancelar integralmente os efeitos do decreto de armas do governo Lula. Na opinião de senadores da oposição, o projeto vai além da competência regulamentar do Poder Executivo.
Um dos autores de um dos PDLs, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente e entusiasta do armamentismo, teve apoio de outros dez senadores, em uma junção das bancadas da bala e da ruralista. Ele acredita que a Polícia Federal pode sofrer um “colapso” no gerenciamento do sistema de registros de armas e associou o decreto a uma “agenda de desmonte do Brasil”.
“Esse decreto petista tem a clara intenção de agradar assaltantes, homicidas e estupradores, pois com as suas vítimas desarmadas terão o seu trabalho facilitado. A oposição e os parlamentares que entendem as reais necessidades do Brasil já declararam apoio ao nosso projeto. Tirar as armas da população é uma armadilha”, afirmou.
O senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) é autor de outro projeto contra o decreto e diz que a medida viola a Constituição em vários pontos, exorbita o poder regulamentar do Executivo e atinge o treinamento de centenas de atletas que buscam classificação para os Jogos Olímpicos. “É necessário destacar a intervenção ilegal do governo em uma atividade econômica, que gera empregos e ajuda no crescimento do PIB. A proibição da venda de armamentos, munições e insumos para recarga em todo o território nacional vai prejudicar milhares de empresários, importadores e a própria indústria”, afirma.
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