O Brasil vive um cenário em que 74% das brasileiras perceberam o aumento da violência doméstica e familiar em 2023. A Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, divulgada em novembro deste ano, pelo DataSenado, ainda aponta outro cenário devastador: das entrevistadas que sofreram algum tipo de violência, a maioria foi violada de forma física, psicológica e/ou moral. Contudo, a violência sexual e patrimonial ainda são muito presentes nas vidas delas.
Agora, se tantas mulheres são reféns em relacionamentos abusivos, disfarçados de complexos e complicados, por que as pessoas que estão vendo tudo isso, como amigos e familiares, não ajudam? Conversamos com especialistas para entender como ajudá-las, mas, em geral, o principal problema é unânime: muitas delas não sabem que precisam de ajuda.
Acolhimento
“Ué, mas se a mulher apanha, é humilhada diariamente, constrangida, xingada, violada sexualmente ou tem todo seu dinheiro controlado e liberdade cerceada, por que ela não denuncia?”
É muito comum que as pessoas falem: “É só separar”. Mas não necessariamente, é tão simples quanto parece. “Para ter uma relação de abuso, na maioria das vezes, o abusado está muito fragilizado e costuma ser uma conjunção de fatores”, explica Vanessa Abdo, doutora em psicologia.
A especialista comenta que se livrar de uma relação abusiva é muito complicado. A pessoa precisa de recursos e da rede de apoio, como amigos e familiares. Contudo, não existe solução simples para problemas tão complexos. São diferentes atores que precisam auxiliar as pessoas que estão em uma situação de abuso físico, psicológico ou financeiro.
É muito comum a gente responsabilizar a vítima naquela situação, como se ela quisesse, gostasse ou não estivesse entendendo a gravidade. Mas muitas vezes, o que a gente precisa dizer para uma mulher que sofre algum tipo de abuso é: se organiza. Desenhe as estratégias que precisar para sair dessa situação. Você não está sozinha, diz a psicóloga
Roselene Wagner, neuropsicóloga, complementa: “A ajuda vem principalmente da escuta qualificada, da compreensão da fragilidade, da ausência de crítica e julgamento. Assim como, de apontar a essa pessoa sua importância, elevar sua autoestima e principalmente ajudá-la a encontrar por alguma via a independência financeira ou emocional”.
Ou seja, o ditado “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” está errado e já caiu em desuso. É preciso “se meter”, ouvir, ajudar e principalmente, cada vez mais falar sobre o assunto.
Todas podem ser vítimas de violência
Ana Hickmann e Naiara Azevedo denunciaram, recentemente, a violência doméstica que sofreram. Ambas, mulheres fortes, bem-sucedidas e famosas. Toda a repercussão dos casos delas, trouxe a tona um assunto muito importante, que sempre precisa ser discutido: qualquer mulher pode ser vítima de violência doméstica.
Afinal, quanto mais falamos sobre às agressões sofridas por elas, mais evidenciamos um ciclo de violência que precisa ser quebrado.
Quando acontece um caso de violência que expõe uma pessoa pública, a repercussão é importante, porque as pessoas pensam: ‘Puxa, acho que isso parece com o que estou vivendo’. Atualmente, as pessoas entendem que os abusos não são normais e quanto mais informação, menos chance da pessoa ficar em uma relação abusiva, explica Vanessa
A especialista considera, que se a pessoa é forte o suficiente para resistir a tanto abandono emocional, selvageria sentimental e abuso psicológico, ela é tanto mais forte para conquistar uma vida onde ela seja protagonista de sua própria história.
“A sociedade exige muito da mulher. É uma cobrança velada, de ter que casar, de ser mãe, de ter um bom emprego e de continuar ‘eternamente jovem e bonita’”, reflete Vanessa. “As mulheres acabam desenvolvendo um pensamento: ‘Não sou feliz, mas tenho marido, e isso basta’. Como se o valor e prova social de que ela ‘deu certo’ na vida, está no fato dela ser casada e exercer a maternidade. Mas isso, precisa mudar”, complementa a psicóloga.
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Autoconhecimento
O contato com a violência doméstica se inicia, muitas vezes, na infância, quando a criança assiste à mãe sendo agredida por seu pai biológico ou parceiro. Existem estudos que sugerem que essas crianças têm maiores chances de mergulharem em relações violentas — fenômeno chamado de transmissão da violência entre gerações.
“Esse legado de submissão e de aceitação é muito forte. Então é preciso desenvolver estratégias para o enfrentamento”, diz Regina. Entre esses pilares, está a necessidade de facilitar o acesso à informação e estruturar apoio para quem pede ajuda. Outro pilar importante é reconstruir, ou até mesmo construir, o autoconhecimento.
A gente precisa desenvolver ferramentas de autoconhecimento. Desenvolver os atores que podem auxiliar mulheres a se libertarem desse cenário de violência. E, além disso, pensar numa mudança profunda de sociedade. Mães e pais são figuras que podem mudar isso, diz a psicóloga
As especialistas ainda reforçam que em um mundo ideal, a mulher precisa ter independência financeira e emocional dos seus parceiros. Adultos precisam estar inteiros em suas relações. A ideia é entender que eles sempre podem ir embora, e que ficar, é uma escolha.
Entretanto, o resgate de si mesma é de fato um processo demorado, sendo preciso paciência. “Devolver a mulher a sua autoestima, seu autovalor, e seu lugar no mundo, é um processo psicológico complexo”, avalia Roselene.
A neuropsicóloga, ainda, explica que o primeiro passo é trabalhar uma tríade: autoconhecimento, autoimagem e autoestima. “Cada mulher carrega em si, uma história de vida. Contudo, após a separação, a criação de uma nova identidade mais forte e mais feliz, vem do apoio desse resgate de si mesma. É possível recomeçar, há vida depois do desenlace do “nó adoecido”, e existe um “eu saudável”, explica.
Curando os traumas
A violência emocional, o abandono afetivo, a negligência sentimental podem causar traumas profundos. As dores da alma, que são invisíveis ao olhar, causam fraturas que demoram a ser reestruturadas. E os impactos são diretos na saúde física e emocional. Entre eles estão:
- Reatividade;
- Depressão;
- Ansiedade;
- Distúrbios alimentares e do sono;
- Agressividade;
- Pressão arterial elevada;
- Diabetes;
- Enxaqueca;
- Dores estomacais.
São vários os danos físicos e psíquicos que relacionamentos abusivos acarretam na saúde da mulher. Isso sem contar os danos diretos, causados por agressões físicas e sexuais — que podem variar de caso a caso, levando até ao feminicídio.
Ressignificar histórias dolorosas, não é tarefa fácil, mas é possível. Não se alie ao inimigo por medo ou vergonha — peça ajuda. Romper o segredo, que serve para preservar o agressor, é o que de mais importante a mulher vítima de violência pode fazer. Enquanto a mulher sofre calada, o homem violento, vai se fortalecendo pela impunidade. Por mais difícil e amedrontador que seja, é possível quebrar o ciclo de violência por meio da denúncia e do pedido de ajuda. Não se cale, conclui a neuropsicóloga
Proteja seus bens
Valeria Scarance, promotora de justiça especializada em violência doméstica, explica que é preciso se proteger. Isso porque, a violência patrimonial está presente na maioria das relações abusivas.
Em regra, as mulheres não enxergam essa violência, porque ainda há uma falsa noção de que a violência é apenas a agressão física, e de que homens, estão mais aptos a lidar com dinheiro.
Segundo a promotora de justiça, existem algumas dicas para se proteger no dia-a-dia do relacionamento:
- É fundamental que a mulher tenha controle sobre suas finanças;
- Sempre invista em capacitação pessoal;
- Guarde documentos relativos a contas, imóveis e outros bens;
- Não assine procurações concedendo poderes para outra pessoa administrar os bens;
- Não realize financiamentos sem que a outra pessoa possa arcar com os pagamentos;
- Caso já esteja em uma situação de abuso econômico, busque ajuda — seja pedindo medidas protetivas ou entrando diretamente com a ação de divórcio.
Além disso, a advogada reforça a importância da educação financeira na formação de crianças e jovens. “Em razão de estereótipos ainda presentes na sociedade e do mito do amor romântico, muitas mulheres investem apenas na família e abandonam, ou relegam para segundo plano, sua vida profissional — contudo, ainda assim, é preciso saber lidar com finanças. Isso porque, no momento da separação, as mulheres são a parte mais vulnerável”, diz Valeria.
Mesmo que não seja casada no papel, a mulher tem direitos
Se a mulher acha que só tem algum direito legal se casar de papel passado, temos novidades: “Morar junto” significa constituir uma união estável que, pela lei, é equiparada ao casamento.
Segundo a promotora de justiça, não há um prazo estabelecido em lei para ser reconhecida essa entidade familiar, mas se exige que a convivência seja pública, contínua, duradoura e com objetivo de constituir família.
Em casos como esses, o casal pode fazer um contrato estabelecendo como ficará a questão patrimonial, semelhante a um “pacto antenupcial”, mas se não houver esse contrato a regra é a divisão em partes iguais daquilo que for adquirido na constância da união.
Ou seja, há os mesmos direitos e deveres do casamento, como a lealdade, respeito, assistência, guarda, sustento e educação dos filhos.
O Brasil é fortemente marcado pela discriminação e pela cultura da violência. Embora na lei, homens e mulheres sejam iguais, em todos os contextos da realidade não há igualdade. O machismo é estrutural e estruturante ao estar presente em todos os lugares, além de habitar o inconsciente coletivo. O nosso país está em evolução, mas é comum que as pessoas fiquem ao lado do agressor, ao invés de apoiar a vítima. É preciso mudar esse cenário, conclui Valeria Scarance.
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