O Supremo Tribunal Federal volta a se debruçar nessa semana sobre a discussão se é ou não crime o porte de drogas para consumo pessoal. Os 11 ministros retomarão nesta quarta-feira (23) o debate que já dura sete anos sobre a constitucionalidade do artigo 28 da Lei das Drogas, de 2006, que considera crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para o próprio uso.
Até o momento, quatro ministros já votaram e se manifestaram favoráveis à descriminalização do porte de maconha para consumo próprio. Foram eles Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso e Gilmar Mendes, o relator da ação, único magistrado que não especificou apenas a erva em sua manifestação. Faltam ainda os sete votos de Dias Toffoli, André Mendonça, Kassio Nunes Marques, Luiz Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia e do recém-empossado Cristiano Zanin.
O caso tem repercussão geral reconhecida, ou seja, o entendimento firmado pelos ministros do Supremo deverá balizar casos similares em todo o país.
Origem do debate sobre porte de drogas
O debate teve origem em 2011, após o flagrante de um homem que portava 3 gramas de maconha em Diadema (SP) e que foi condenado ao cumprimentto de dois meses de prestação de serviços comunitários. A Defensoria Pública de São Paulo entrou com recurso argumentando que o ato não representa ameaça à saúde pública, apenas a saúde do usuário. Também foi questionado o artigo 28 da Lei das Drogas, que classifica como crime o porte de drogas para consumo próprio, e diz que a criminalização do porte individual fere o direito à liberdade, à privacidade e à autolesão.
O caso foi parar no STF no final do mesmo ano, mas o julgamento só começou mesmo em 2015 com a apresentação do relatório de Gilmar Mendes, que votou pela inconstitucionalidade do artigo. Em seguida, Edson Fachin suspendeu o julgamento pela primeira vez com um pedido de vista.
Ainda no mesmo ano o caso foi retomado com os votos de Fachin e Barroso, mas novamente foi interrompido por pedido de vistas de Teori Zavascki, ministro que morreu em acidente aéreo no início de 2017. A vaga foi ocupada por Moraes e o caso permaneceu sem avanços até agosto desse ano, quando o substituto de Teori declarou o seu voto.
Como funciona a legislação hoje
Apesar de ser considerado crime, o porte de drogas para consumo próprio não leva o acusado à prisão. As punições acabam sendo advertências, prestação de serviços à comunidade e a aplicação de medidas educativas. Os processos são encaminhados a juizados especiais criminais e os acusados não têm registro nos antecedentes criminais.
A lei que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), mais conhecida como Lei das Drogas, foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em agosto de 2006, três meses após uma alta de casos de violência em São Paulo atribuída à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).
A Lei das Drogas tinha como objetivo separar quem é usuário de quem é traficante, além de tratar o dependente como questão de saúde pública, oferecendo tratamento e reinserção social. O artigo 28 da lei, objeto do debate no STF, estabelece ser crime “adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
O mesmo artigo ainda destaca que “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Portanto, não estabelece quantidade sobre o porte de entorpecentes. Ainda diz que é “indispensável a licença prévia da autoridade competente para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir”, sob pena de reclusão de cinco a 15 anos.
Como votaram os ministros
Voto de Gilmar
O relator Gilmar Mendes votou, ainda em 2015, a favor da descriminalização da posse de drogas para uso pessoal. Para o ministro, criminalizar estigmatiza o usuário e se mostra um método ineficaz no combate às drogas, além de ferir o direito à privacidade e “o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”.
Em seu voto, Gilmar listou uma relação de países em que a posse para consumo pessoal não é considerada crime e fez a diferenciação entre descriminalizar e liberar. “Quando se cogita, portanto, do deslocamento da política de drogas do campo penal para o da saúde pública, está se tratando, em última análise, da conjugação de processos de descriminalização com políticas de redução e de prevenção de danos, e não de legalização pura e simples de determinadas drogas, na linha dos atuais movimentos de legalização da maconha”, disse.
Voto de Fachin
Fachin foi o segundo a votar e também defendeu a descriminalização do porte para consumo próprio, porém, apenas para uso de maconha. O ministro disse que o uso de entorpecentes é “moralmente reprovável”, mas o Estado não pode “impor modelos de virtude pessoal e tampouco julgar as ações de um cidadão por seus efeitos sobre o caráter do próprio agente”.
O ministro discordou do voto do relator sobre a descriminalização de todas as drogas, defendendo apenas a posse para consumo da maconha. “A dependência é o calabouço da liberdade mantida em cárcere privado pelo traficante”, disse duas vezes durante seu voto. E, por fim, cobrou o Congresso sobre “o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante”.
Voto de Barroso
Barroso seguiu a linha adotada por Fachin no voto anterior e defendeu a descriminalização apenas do porte para uso próprio da maconha, discordando do voto do relator. O ministro disse logo na abertura do voto que “estamos lidando com um problema para o qual não há solução juridicamente simples nem moralmente barata” e fez a sua defesa: “a conduta em questão não extrapola o âmbito individual, e o Estado não pode atuar pela criminalização. O principal bem jurídico lesado pelo consumo de maconha é a própria saúde individual do usuário, e não um bem jurídico alheio”.
O ministro também tratou de explicar as diferenças entre descriminalizar, despenalizar e legalizar. “Descriminalizar significa deixar de tratar como crime. Despenalizar significa deixar de punir com pena de prisão, mas punir com outras medidas. Este é o sistema em vigor atualmente. Legalizar significa que o direito considera um fato normal, insuscetível de qualquer sanção, mesmo que administrativa. A discussão no presente processo diz respeito à descriminalização, e não à legalização. Vale dizer: o consumo de maconha ou de qualquer outra droga continuará a ser ilícito. O debate é saber se o Direito vai reagir com medidas penais ou com outros instrumentos, como, por exemplo, sanções administrativas”.
Barroso citou as experiências do Uruguai e estados norte-americanos e foi mais um que cobrou que o Legislativo atue nas questões de produção e distribuição da maconha, afirmando que a lei que trata do plantio é inconstitucional. “Há grande inconsistência em descriminalizar o consumo e manter a criminalização da produção e da distribuição”, disse. Ele defende que o usuário possa portar até 25 gramas da maconha; acima disso, já seria enquadrado como traficante.
Voto de Moraes
Moraes seguiu o voto dos colegas de Corte e deixou o placar 4 a 0 a favor da discriminalização do porte da maconha para uso próprio, especificando que se trata apenas da erva, assim como fizeram Fachin e Barroso e diferente do voto de Gilmar. O magistrado cobrou uma aplicação “isonômica” da Lei de Drogas e disse que a regra não atinge a todos de forma igualitária, mesmo para situações idênticas, dependendo de fatores como classe social, idade ou grau de instrução de pessoas que são presas em flagrante.
“O branco precisa estar com 80% a mais de maconha do que o preto e pardo para ser considerado traficante. Para um analfabeto, por volta de 18 anos, preto ou pardo, a chance de ele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é muito grande”, afirmou o ministro, citando dados de um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria. “Já o branco, mais de 30 anos, com curso superior, precisa ter muita droga no momento para ser considerado traficante”.
Outra justificativa usada por Moraes foi o encarceramento em massa seguido pelo fortalecimento das facções criminosas. “A aplicação da lei gerou aumento do poder das facções no Brasil. Aquele que antes era tipificado como usuário, quando despenalizou, o sistema de persecução penal não concordou com a lei e acabou transformando os usuários em pequenos traficantes. O pequeno traficante, com a nova lei, tinha uma pena alta e foi para sistema penitenciário. Jovem, primário, sem oferecer periculosidade à sociedade, foi capturado pelas organizações criminosas”, comentou.
Moraes defendeu que o porte de maconha para uso próprio seria entre 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas de cannabis e ressaltou que o tráfico se modificou ao longo dos tempos e se adaptou aos consumidores. “Hoje, o tráfico de drogas em regiões abastadas das grandes cidades do país é feito por delivery. Há aplicativos que a pessoa chama e, assim como o IFood leva comida, leva a droga”, completou.
O que pensam oposição e governo sobre o tema
Oposicionistas e governistas divergem em relação ao tema da descriminalização do porte de maconha para consumo próprio. O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do governo Lula, Silvio Almeida, se mostrou favorável à mudança em audiência na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados.
“Trata-se de fazer com que a prisão não seja um meio social de controle da pobreza, em que nós só prendemos pobres e os ricos que traficam em grande estilo, com o uso de aviões, também tenham de enfrentar os rigores da lei”, disse o ministro, deixando claro que se trata de uma opinião pessoal, e não do governo.
No entanto, a oposição se mobiliza nos bastidores para tentar barrar o julgamento no STF e estuda até a apresentação de um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) contra a liberação do porte. “A minha preocupação é como é que vai ficar. A pessoa pode andar com droga e aí vai comprar onde? Isso vai fortalecer o tráfico”, disse o senador Eduardo Girão (Novo-CE). “O Brasil pode abrir as portas para legalizar todas as drogas. Essa conversa de que é maconha medicinal é uma desculpa esfarrapada para legalizar o uso recreativo. Vai aumentar o crime”, disse o senador Magno Malta (PL-ES).