Em um ambiente escolar não é estranho crianças se desentenderem. Elas brigam umas com as outras. Tapas, puxões de cabelo, empurrões e beliscões são coisas que acontecem. O problema é quando algo tão corriqueiro, que a princípio seria fácil de se contornar, vira caso de polícia. Já imaginou se toda arenga dentro de uma escola se transformar em um processo judicial e acabar em um tribunal? Para evitar que conflitos do cotidiano estudantil se tornem graves problemas ou até tragédias e para construir um ambiente escolar mais harmonioso, foi criado o projeto Conselho Escolar Ativo e Restaurativo, uma iniciativa da 58ª Promotoria de Justiça de Natal, do Ministério Público do Rio Grande do Norte. A Justiça Restaurativa é um método alternativo ao modelo tradicional de justiça, que visa estabelecer uma nova cultura de paz, proporcionando processos mais céleres e tranquilos.
E qual o objetivo do Conselho Escolar Ativo e Restaurativo? Funciona? O projeto nasceu a partir da necessidade de os Conselhos Escolares terem condições de solucionar conflitos envolvendo os próprios membros da comunidade escolar, sejam eles alunos, pais, professores, diretores ou outros funcionários, utilizando princípios, métodos e técnicas da Justiça Restaurativa, sem que haja a necessidade de uma ação ostensiva do Ministério Público ou intervenção judicial. E está dando tão certo que o projeto, atualmente pioneiro na capital potiguar, deverá ser copiado em outros locais. João Câmara, Mossoró, Parelhas e Caicó já demonstraram este interesse. Mais que isso: o projeto está prestes a ser alçado à condição de Política Pública de Educação na Prefeitura de Natal.
“É claro que dá muito certo! Estamos diante de um projeto que busca usar a ferramenta da Justiça Restaurativa nas escolas e sua comunidade escolar. No meu entender, isto é bastante positivo, porque pacifica o ambiente escolar, torna a convivência mais saudável, o que permite que a educação seja o foco principal dentro da escola, e não os conflitos”, afirmou o promotor Oscar Hugo de Souza Ramos, titular da 58ª Promotoria de Justiça da Educação, que atua em Natal.
Para não ficar apenas na teoria, Oscar Ramos fez questão de dar alguns exemplos de como o projeto é relevante. Ao portal iBand, ele contou a história de uma briga de crianças, coisa que quase sempre é inevitável quando a meninada se junta, mas que infelizmente foi parar em uma delegacia. “Aconteceu uma situação aparentemente corriqueira. Começou com um beliscão dado por um menino de seis anos em um coleguinha da mesma idade. Deu muito trabalho para a direção do colégio. O pai do menino que levou o beliscão procurou a escola para cobrar providências. A professora conversou com as crianças, explicou que brigar é feio e que não se pode machucar o coleguinha. Só que o filho, posteriormente, chegou em casa novamente com outro problema com os amiguinhos da sala. O pai voltou à escola bastante chateado com a direção da escola, e depois foi até uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência. As atitudes dele deixaram a direção da escola assustada. Em um momento posterior, a polícia foi chamada e o homem chegou a ser encaminhado para a delegacia. Por conta disso, o filho não quis mais ir para a escola. Daí a direção deu queixa do pai, entendendo que o menino não estava mais indo para as aulas porque o pai estava proibindo o filho de voltar para a escola. Olha só o tamanho da confusão! Essa é uma situação que poderia ser resolvida da melhor forma possível, caso, logo no início, o Conselho Escolar fosse acionado e recorresse aos métodos e estratégias da Justiça Restaurativa para reverter aquela situação que se formou. Por isso a importância de se capacitar os conselheiros de cada escola para poderem usar este método de resolução dos conflitos”, concluiu o promotor.
“Na minha percepção, o projeto vai muito além do ambiente escolar. Ele vai cuidar deste ambiente escolar, ele vai trazer uma ambiência restaurativa e vai trazer transformação social. Transformação para dentro destas pessoas, de um modo geral, permitindo que haja um fortalecimento de vínculos entre a própria equipe, cuidando destas pessoas que, de um modo geral são cuidadoras também, e permitindo com que essa comunidade escolar também esteja mais fortalecida, trazendo prevenção”, destacou Evelyne Cerqueira, secretária do Núcleo Permanente de Incentivo à Autocomposição (NUPA).
Do falso roubo de uma mochila ao salvamento de um lar
A secretária do NUPA tem total razão quando ela diz que o projeto Conselho Escolar Ativo e Restaurativo vai muito além do ambiente escolar. O promotor Oscar Ramos corrobora com Evelyne Cerqueira ao citar o caso de uma rádio de uma cidade em outro Estado, que por muito pouco não foi sentenciada a pagar uma indenização financeira por conta de uma notícia falsa. Porém, no final das contas, a mesma emissora acabou contribuindo para salvar a família que ela mesma prejudicou com o erro cometido. “Lembro de uma palestra recente em que se relatou que uma aluna foi acusada injustamente de ter roubado a mochila de um colega. Ela passou a sofrer bullying onde estudava, chegou a sair da escola e quase abandonou os estudos depois que a rádio divulgou a história, pensando que o fato realmente havia acontecido. Só que não foi bem assim. Depois, se descobriu a verdade: que a jovem havia achado a bolsa perdida e a devolveu no dia seguinte. Diante da divulgação de fato tão grave, a família da garota chegou a processar a rádio. A promotoria de Justiça intermediou a conciliação e a emissora se retratou, pedindo desculpas à aluna e à família dela. Em meio a tudo isso, a avó da menina, inclusive, revelou que já havia cantado na rádio, numa época passada, e essa lembrança virou história e destaque na programação da emissora. Um ano depois de tudo resolvido, por ironia do destino, a família perdeu a casa em que morava durante uma inundação causada pelas chuvas que caíram na cidade. Sabendo do drama, a rádio fez uma campanha e conseguiu arrecadar dinheiro e recuperou a casa da família da menina. Ou seja, ao se aprofundar no que realmente importava no caso, com base na escuta das pessoas envolvidas e na pacificação do conflito, verificou-se que a melhor solução não seria o pagamento de uma indenização, mas sim um pedido de desculpas e a retratação pública da rádio, explicando que a criança não tinha feito nada de errado, restaurando-se os vínculos rompidos, trazendo um melhor resultado para todas as partes que estavam em briga judicial e, posteriormente, em virtude da empatia que surgiu, ainda houve um desdobramento positivo com a ajuda à família da menina em momento posterior”, pontuou o promotor.
“Sobre conflitos internos, saímos de uma nota 5 para 7,5”
“Se você quer falar sobre conflitos internos, posso dizer que saímos de uma nota 5 para 7,5. Aqui, o ambiente andava muito ruim. Hoje, graças ao programa de Justiça Restaurativa, temos um ambiente de trabalho muito melhor de conviver, de aceitar as diferenças. Posso dizer que dá muito certo”, afirmou o professor Arthur Sarmento Veríssimo. Ele é gestor pedagógico da Escola Municipal Professor Zuza, em Natal.
Segundo Arthur, faz três meses que a escola recebeu a visita de representantes do MP e da Secretaria Municipal de Educação de Natal, justamente para oferecer a capacitação desenvolvida pelo projeto Conselho Escolar Ativo e Restaurativo. Cerca de 20 professores foram treinados. Arthur foi um deles. “Depois da capacitação, certeza absoluta que estamos atuando sob outra perspectiva, com um olhar mais acolhedor e mais atencioso. Antes era diferente. Um diagnóstico feito pela equipe que esteve aqui conosco detectou que havia a necessidade de melhoramos a nossa relação interpessoal. Hoje, cuidamos melhor uns dos outros, dos nossos alunos, dos nossos professores, dos nossos funcionários. Toda a comunidade escolar tem melhorado bastante”, acrescentou.
A E.M. Professor Zuza possui 486 alunos. Em média, são crianças de 6 anos a adolescentes de 15 anos que fazem parte do ensino fundamental, além de adultos e idosos de até 70 anos que estudam no programa Educação de Jovens e Adultos, o EJA. Também fazem parte da comunidade escolar do colégio aproximadamente 60 funcionários, entre professores e servidores públicos municipais.
“O círculo restaurativo, para mim, foi excelente, porque antes não tinha união. O resultado está sendo excepcional. Antes só existia o ‘eu’, mas agora é sempre o ‘nós’. Hoje, trabalhamos juntos e tudo o que fazemos é em conjunto”, disse emocionado o auxiliar de serviços gerais Gilberto Francisco Rocha Freitas, que também deixou seu depoimento acerca da importância da justiça restaurativa.
Acordo que vira projeto que vira lei que vira política pública
A Justiça Restaurativa que é a base do projeto “Conselho Escolar Ativo e Restaurativo” deverá, muito em breve, se tornar Política Pública não apenas na Educação, mas em todas as áreas no âmbito do Município do Natal. A prefeitura de Natal já se manifestou a favor do encaminhamento de um projeto de lei municipal à Câmara de Vereadores.
É que antes mesmo da ideia do citado projeto, já existia uma atuação interinstitucional formalizada pelo Acordo de Cooperação Técnica envolvendo o Ministério Público Estadual, o Tribunal de Justiça, a UFRN e a Prefeitura do Natal. O acordo foi celebrado no ano de 2019 e resultou em várias reuniões, debates e, por fim, na elaboração de um projeto de lei municipal, considerando:
a) A promoção da cidadania e da solidariedade como um dos objetivos a ser perseguido pelo Estado Democrático de Direito, como se infere dos termos do artigo 3º, incisos I, II, III e IV da Constituição Federal;
b) A Lei Federal nº 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, que em seu artigo 35 dispõe sobre a excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas socioeducativas, prevalecendo os meios de autocomposição de conflitos, e ao uso de práticas ou medidas restaurativas, sempre que possível com a participação das vítimas;
c) A preocupação das autoridades educacionais diante do crescimento da prática do assédio moral, denominado bullying, no âmbito escolar, e das diversas situações de conflito vivenciadas nos estabelecimentos de ensino da rede municipal em suas diversas unidades administrativas;
d) As experiências exitosas desenvolvidas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte – TJRN na difusão e implementação da Justiça Restaurativa como método de solução consensual de conflitos, por meio do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos – NUPEMEC, dos Centros Judiciários de Solução Consensual de Conflitos – CEJUSC’s e da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Natal, atendendo os dispositivos da Resolução nº 225/2016, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ;
e) A intenção da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN de incorporar em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão a Justiça Restaurativa, inclusive contando com facilitadores de círculos de justiça restaurativa formados em seus quadros;
f) As possibilidades de difusão da Justiça Restaurativa como método consensual de conflitos, promotor da cultura de paz e totalmente adequado a serviços públicos de educação, saúde e assistência social.
A Justiça Restaurativa
De acordo com a minuta do Projeto de Lei, documento que se encontra no gabinete do prefeito de Natal, pronto para ser enviado à Câmara Municipal, entende-se Justiça Restaurativa como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias que visam à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência e à criação e ao fortalecimento de vínculos de conexão e pertencimento comunitário. São valores da Justiça Restaurativa: a interconexão, o respeito, a empatia, a esperança, a horizontalidade, a participação, a voluntariedade, a pluralidade, a particularidade, o empoderamento, o diálogo, a corresponsabilidade, a informalidade, a confidencialidade, entre outros.
Chefe do Departamento de Educação Infantil da Secretaria de Educação de Natal, Angélica Priscilla falou sobre sua experiência com a metodologia aplicada pela Justiça Restaurativa. “Para mim, é enriquecedora e extremamente prazerosa. Pôde firmar e reafirmar a importância de ouvir, a importância do escutar e, principalmente, de que a vida nos traz no tempo certo para cada coisa. Então, o momento de ouvir, o momento de falar e, assim, se sentir partícipe da sociedade de uma forma coletiva, se respeitando, primeiramente, e respeitando o outro. Muito obrigada pela experiência”.
Com a futura aprovação da lei municipal, os benefícios da implementação da Justiça Restaurativa poderão ser sentidos não apenas nas escolas, mas também nas unidades de saúde, de assistência social e nos demais serviços públicos do Município do Natal, pois não será apenas um projeto, mas uma política pública a ser observada no âmbito municipal.
MP forma primeira turma de facilitadores
Vanessa Alessandra Alves Varela é assistente social, assistente ministerial das promotorias de Justiça da Educação e corresponsável pelo projeto Conselho Escolar Ativo e Restaurativo. Na semana passada, mais precisamente no dia 26 de outubro, ela celebrou um marco: a conclusão do 1º Curso de Formação Continuada de Justiça Restaurativa na Educação.
Quatorze servidores das secretarias de Educação de Natal e Parnamirim e do próprio MPRN receberam 100 horas de capacitação e agora estão aptos a lidar com os processos circulares de paz nas escolas. “Tanto na prevenção como na facilitação de solução de conflitos. Estes profissionais executarão as práticas e a políticas de justiça restaurativa no contexto educacional”, comemorou.